sexta-feira, 18 de junho de 2010

domingo, 31 de janeiro de 2010

Gorki e seu mundo cinza



Ora se Deus pode fazer tudo a seu bel prazer, o homem, sua imagem e semelhança, também pode, mas ele não podia, Gorki de nome, que assim o deram, graças a Luiza, estava sozinho, andara a tarde inteira perdido, e assim andará até que seus dias finalmente se findem, porque ele não tinha a quem proteger, porque ele não tinha onde dormir, porque ele não tinha quem lhe desse afago, porque ele não tinha um não sei o que, que nasce não sei onde e vem não sei como, porque para ele isso era liberdade, porque ele não era um homem, tal qual estamos acostumados a descrever, mas era uma criatura desse mundo. Se dizem que o cão é o melhor amigo do homem, Gorki não entendera muito bem essa máxima, chutado de casa tal qual um vira-lata, e ele não era um, no breu da noite sentia um cheiro diferente, mas por incrível que pareça, o medo não o assombrou, era um cheiro de liberdade. Cão desde que nasceu, criado dentro de uma casa, um lar, nunca tinha experimentado isso, mas por mais que pareça que o tempo o faça esquecer, ele tinha seus instintos, e era hora de seu despertar.

Gorki estava três semanas vagando pelas ruas, sentia fome, cansaço, estava magro, suas costelas saltavam, ele não entendia como não conseguia encontrar comida, os homens o enxotavam, chutavam, gritavam, batiam, tudo que ele queria era algo para forrar o estômago, para se sentir forte, no seu antigo lar era diferente, as pessoas fora da casa eram diferentes das de dentro dela, mas Gorki não se importava com isso, ele era livre, seus últimos dias dentro da casa, desde que Luiza tinha ido embora, foram insuportáveis, sentia falta dela, ainda bem que o expulsaram de casa.

O medo tomara conta de Gorki, ele se confundira, seus instintos caninos falharam, na verdade, nunca os teve, estava muito acostumado a viver em casa, um bando de cachorros devorava restos no lixo, mas como, indagava-se, como comer aquilo, Gorki não conseguia, e por isso ele continuava vagando, sem rumo, cada vez mais magro, cada vez mais sujo, cada vez mais fraco, a fome o deprimia.

O cheiro do orvalho sempre lhe fizera bem, Gorki demorou mas se sujeitou, comia o que encontrava nas latas de lixo daquele restaurante, naquela manhã fria, acordara com o orvalho em seus pêlos quando o lixo fora jogado nas latas, ele as derrubava, bagunçava, espalhava, separava e comia o que melhor conseguia encontrar, mas um homem saiu da porta do restaurante e viu Gorki com o lixo espalhado. E gritou o homem: “Cão infeliz!” e jogou uma pedra com tamanha força que atingiu em cheio a perna traseira esquerda de Gorki, ele gritou, um grito agudo, profundo, cortante, saiu correndo o melhor que podia, mancando, ora caindo, e então se arrastando, ora se levantando e então caindo novamente, para novamente se arrastar, assim como as horas se arrastam quando a vida se torna um pesadelo sem esperanças e agradece-se o fim de mais um longo dia em que viver é apenas existir, e graças a Deus, se uma coisa existe, um dia ela terá que deixar de existir, essa era a fé de Gorki.

Uivemos, disse o cão, e eles uivaram, Gorki não sabia uivar, não entendia o significado daquilo, cães caçavam na escuridão de um beco, Gorki observava, não sabia caçar, cães rodeavam uma cadela, todos felizes, se divertiam, como só os cães sabem se divertir assim, Gorki não compreendia aquela diversão, se sentira mal, o mundo não era o esperado, a liberdade perdera aquele cheiro fresco e tornara-se amargo.

O mundo era cinza, Gorki se sentia incapaz de qualquer coisa, se sentia diferente de seus semelhantes, tinha medo da morte, mas era covarde com a vida, um fraco, tinha saudades do conforto da casa, mas não queria voltar, não suportaria mais aquele lugar, não sem Luiza, ele existia, e apenas isto, coisa que lhe incomodava completamente, tudo era tão difícil, tudo era tão sofrível, saber da efemeridade de tudo era o que lhe dava esperanças.

Desde que ficara manco, nunca mais se alimentara, era fim do dia, estava claro ainda, mas Gorki estava muito fraco, a fome era tanta, que ele nem reconhecia aquela sensação. O parque estava deserto, fazia um bocado de tempo que as últimas pessoas tinham ido embora, Gorki caminhava manco, lento, muito lento, uma hora ele não agüentou o próprio peso, lhe faleceram as forças e baqueou. Uma vez em terra, o horizonte se ofereceu imprevisto, num tom límpido e arroxeado, o poente parecia púrpuro e calmo. Tinha vontade de dormir, como o chão era macio, o vento roçava-lhe os pêlos num movimento suave e doce. Ao longe ele viu algo claro, muito claro, vindo em sua direção, pensara que fosse o sol, mas na medida que se aproximava ia ganhando uma forma, era Luiza, olhou para ele e sorriu, Gorki ficou feliz, e viu o horizonte mais uma vez, a última vez, se inundou de um gozo bom e desconhecido e finalmente no escuro se abismou ao nada.